Como deveria a análise social marxista relacionar-se com a ciência social burguesa? A resposta é óbvia: absorver e desenvolver o que é útil, criticar e rejeitar o que não tem valor. A ciência social marxista no entanto seguiu o caminho oposto. Ao assimilar os princípios da sociologia funcionalista, reforçada pela tradição hegeliana, a análise social marxista adquiriu uma teoria aparentemente sólida que na verdade encoraja o pensamento indolente e a ausência de polêmica. Por outro lado, virtualmente todos os marxistas têm rejeitado a teoria da escolha racional em geral e, em particular, a teoria dos jogos. Entretanto, a teoria dos jogos é de valor inestimável para qualquer análise do processo histórico centrado na exploração, conflito, alianças e revolução.
Existe, entretanto, uma maneira pela qual a classe capitalista pode promover seus interesses coletivos: através do Estado. Aqui confrontamo-nos com a dificuldade de especificar o caráter capitalista do Estado na sociedade capitalista. Marx não acreditava que os Estados concretos do século XIX fossem emanação direta e instrumento do domínio da classe capitalista. Ao contrário, ele argumentava que era interesse da classe capitalista ter um governo não capitalista — conduzido pela aristocracia na Inglaterra, pelo Imperador e sua burocracia na França. Era útil para os capitalistas ingleses permitir que a aristocracia permanecesse no poder, pois a luta política entre governantes e governados tornaria imprecisas as linhas da luta econômica entre exploradores e explorados. De forma similar, o capitalismo no continente europeu somente poderia sobreviver com um Estado que aparentemente se colocasse acima das classes. Nessas análises Marx afirma que o Estado não capitalista era benéfico para o capitalismo. Ele jamais diz ou sugere que esse benefício era deliberadamente buscado pela classe capitalista, mas sugeria fortemente que isso explicava a presença do Estado não capitalista:
"A burguesia confessa que é do seu próprio interesse libertar-se dos perigos de seu próprio governo; que para restaurar a tranquilidade no país, o seu Parlamento burguês, antes de mais nada, tem de ser calado; que para manter seu poder social intacto, seu poder político tem de ser quebrado; que, para garantir ao capitalista individual a exploração das outras classes e o gozo sem perturbações de sua propriedade, família, religião e ordem, é preciso que sua classe seja condenada, junto com as outras classes, a apreciar a nulidade política; que para salvar sua bolsa ele deve renunciar à coroa, e a espada que aí está para salvaguardá-lo, deve ao mesmo tempo estar suspensa sobre sua própria cabeça como a espada de Dâmocles."
Desafio qualquer um a ler esse texto sem entendê-lo como uma explicação do regime bonapartista. O que há nele senão uma explicação funcionalista? O Estado anticapitalista é a estratégia indireta pela qual o capitalista assegura seu domínio econômico: um passo para trás, dois passos para frente. Mas uma explicação em termos de funções latentes nunca pode invocar considerações estratégicas desse tipo. O "funcionalismo de longo prazo" sofre de todos os defeitos das explicações funcionalistas comuns, especialmente do problema de ter um propósito em busca de um agente intencional. Além do mais, é arbitrário, porque a manipulação da dimensão temporal quase sempre nos permite encontrar uma maneira pela qual um dado padrão é bom para o capital. É ambíguo, porque a distinção entre o curto e o longo prazo pode tanto ser lida seja como uma diferença entre efeitos transitórios e efeitos duráveis, seja como uma diferença entre dois tipos de efeitos duráveis. É incoerente, porque efeitos positivos a longo prazo nunca poderiam dominar efeitos negativos de curto prazo na ausência de um ator intencional. Não é possível, portanto, identificar o Estado numa sociedade capitalista como Estado capitalista simplesmente devido às suas consequências favoráveis para o domínio econômico burguês.
ICARO RAFAEL MATTA PEREIRA
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