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quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Linguagem parcial


     Comecemos num pressuposto simples, que logo explicaremos: nenhuma linguagem é neutra, nenhuma língua (como forma sistemática, codificada e ordenada de linguagem) é eticamente imparcial, esvaziada de valores ou meramente instrumental. Todas as relações humanas, toda a relação entre seres é linguisticamente mediada, sendo a língua o elemento mais convencional em que toda a relação se estrutura, vive e se determina. Por isso mesmo, porque nenhuma linguagem nem nenhuma língua são isentas de valores, é também pela linguagem que o preconceito subsiste ou, pelo contrário, é ultrapassado.
     Convém assegurar, por isso, que pensar em linguagem e em língua é pensar em algo que não dominamos totalmente, que nos define e nos identifica mas onde temos poder limitado. A língua é uma morada, algo que não se domina totalmente, desde logo porque a língua é uma herança. Nós já nascemos numa língua que nos precede e que, de alguma maneira, nos faz crescer nela – na sua configuração ideológica, histórica e identitária – e não simplesmente com ela. A língua não nasce de geração espontânea. Ela é constituída por uma rede complexa e dinâmica de regras e de convenções que ultrapassam o indivíduo e a sua época, mas que os determina com decisiva intensidade. A língua é, frequentemente, a primeira fronteira com que se conta e que, como todas as fronteiras, pode assinalar a linha de convívio entre diferentes ou, pelo contrário, separar universos de forma hostil e decisiva. Daí que língua, linguagem e racismo adquiram uma conexão evidente, quando o conceito menorizador do outro e o próprio conceito equívoco de raça se estabelecem como formas antecipadas de definir o distinto.
   E o distinto pode ser valorizado, como condição de possibilidade do próprio conceito de relação, ou confinado e regulado na mais restritiva lógica de poder. Tudo se joga, pois, na complexa relação entre língua, linguagem e poder, que aqui encaramos de forma brevíssima.
    É na linguagem que os poderes se inscrevem. Assumir este pressuposto é uma urgência, principalmente quando verificamos que a linguagem é um dos elementos de potenciação do racismo e de outras formas de discriminação.
    A assimetria entre as pessoas manifesta-se e sustenta-se na linguagem, sendo concretamente na língua que se instalam e se naturalizam diferenças simbólicas, sociais, culturais… que nutrem fenómenos de discriminação. Antigas e novas formas de racismo nascem ou recriam-se na linguagem, alimentam-se nela, sendo a pretensa imparcialidade instrumental da linguagem uma das formas de encobrir e de perpetuar discursos discriminatórios dos mais diversos. Exemplo crescentemente denunciado mas nem por isso ultrapassado é, de modo evidente, o universal masculino, em que a categoria “Homem” serve para designar todas as pessoas, sejam estas homens, mulheres ou crianças. Na verdade, o que aqui está em causa é um poder em que o único agente é realmente o homem, na hegemonia da sua presença na história, na linguagem da história e nas formas implícitas dessa hegemonia, sendo este “homem universal”, realmente, um homem branco, europeu, autóctone, judaico-cristão, etc. O critério do universal passa a ser o que designa o universal, denunciando-se assim a estrutura masculinizante da maior parte das línguas ocidentais e todos os outros e as outras que desse universal se excluem automaticamente: a mulher, o/a não branco/a, o/a não-ocidental. A linguagem e as línguas mostram, assim, como racismos, sexismos e xenofobias vêm de mãos dadas como formas de exclusão face a um universal impositivo e normalizador.
    A linguagem, supostamente cristalina e imparcial, pretendendo despir-se de particularismos em nome de uma espécie de ambição universal, tende a classificar, a hierarquizar e a pré-definir. O racismo e, de um modo geral, discursos discriminatórios como os etnocentrismos, sexismos, homofobia ou xenofobia, dependem de uma visão global e distorcida do outro, apesar de tudo disfarçada no tal álibi da classificação neutra. Tal visão antecipa-se a indivíduos concretos e situações concretas, como uma espécie de processo de rotulagem destinado a anular e a silenciar o outro, na sua voz própria.

ICARO RAFAEL MATTA PEREIRA

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