Comecemos
num pressuposto simples, que logo explicaremos: nenhuma linguagem é neutra,
nenhuma língua (como forma sistemática, codificada e ordenada de linguagem) é
eticamente imparcial, esvaziada de valores ou meramente instrumental. Todas as
relações humanas, toda a relação entre seres é linguisticamente mediada, sendo
a língua o elemento mais convencional em que toda a relação se estrutura, vive
e se determina. Por isso mesmo, porque nenhuma linguagem nem nenhuma língua são
isentas de valores, é também pela linguagem que o preconceito subsiste ou, pelo
contrário, é ultrapassado.
Convém assegurar, por isso,
que pensar em linguagem e em língua é pensar em algo que não dominamos
totalmente, que nos define e nos identifica mas onde temos poder limitado. A
língua é uma morada, algo que não se domina totalmente, desde logo porque a
língua é uma herança. Nós já nascemos numa língua que nos precede e que, de
alguma maneira, nos faz crescer nela – na sua configuração ideológica,
histórica e identitária – e não simplesmente com ela. A língua não nasce de
geração espontânea. Ela é constituída por uma rede complexa e dinâmica de
regras e de convenções que ultrapassam o indivíduo e a sua época, mas que os
determina com decisiva intensidade. A língua é, frequentemente, a primeira
fronteira com que se conta e que, como todas as fronteiras, pode assinalar a
linha de convívio entre diferentes ou, pelo contrário, separar universos de
forma hostil e decisiva. Daí que língua, linguagem e racismo adquiram uma
conexão evidente, quando o conceito menorizador do outro e o próprio conceito
equívoco de raça se estabelecem como formas antecipadas de definir o distinto.
E o distinto pode ser
valorizado, como condição de possibilidade do próprio conceito de relação, ou
confinado e regulado na mais restritiva lógica de poder. Tudo se joga, pois, na
complexa relação entre língua, linguagem e poder, que aqui encaramos de
forma brevíssima.
É na linguagem que os poderes
se inscrevem. Assumir este pressuposto é uma urgência, principalmente quando
verificamos que a linguagem é um dos elementos de potenciação do racismo e de
outras formas de discriminação.
A assimetria entre as pessoas
manifesta-se e sustenta-se na linguagem, sendo concretamente na língua que se
instalam e se naturalizam diferenças simbólicas, sociais, culturais… que nutrem
fenómenos de discriminação. Antigas e novas formas de racismo nascem ou
recriam-se na linguagem, alimentam-se nela, sendo a pretensa imparcialidade
instrumental da linguagem uma das formas de encobrir e de perpetuar discursos
discriminatórios dos mais diversos. Exemplo crescentemente denunciado mas nem
por isso ultrapassado é, de modo evidente, o universal masculino, em que a
categoria “Homem” serve para designar todas as pessoas, sejam estas homens,
mulheres ou crianças. Na verdade, o que aqui está em causa é um poder em que o
único agente é realmente o homem, na hegemonia da sua presença na história, na
linguagem da história e nas formas implícitas dessa hegemonia, sendo este
“homem universal”, realmente, um homem branco, europeu, autóctone,
judaico-cristão, etc. O critério do universal passa a ser o que designa o
universal, denunciando-se assim a estrutura masculinizante da maior parte das
línguas ocidentais e todos os outros e as outras que desse universal se excluem
automaticamente: a mulher, o/a não branco/a, o/a não-ocidental. A linguagem e
as línguas mostram, assim, como racismos, sexismos e xenofobias vêm de mãos
dadas como formas de exclusão face a um universal impositivo
e normalizador.
A linguagem, supostamente
cristalina e imparcial, pretendendo despir-se de particularismos em nome de uma
espécie de ambição universal, tende a classificar, a hierarquizar e a
pré-definir. O racismo e, de um modo geral, discursos discriminatórios como os
etnocentrismos, sexismos, homofobia ou xenofobia, dependem de uma visão global
e distorcida do outro, apesar de tudo disfarçada no tal álibi da classificação
neutra. Tal visão antecipa-se a indivíduos concretos e situações concretas,
como uma espécie de processo de rotulagem destinado a anular e a silenciar o
outro, na sua voz própria.
ICARO RAFAEL MATTA PEREIRA
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